CARTA DE BRASÍLIA
Seminário Internacional “Alternativas de Enfrentamento à Crise”
Hoje,
dia 5 de outubro de 2011, centenas de representantes de entidades do
Brasil, Argentina, Belgica, Colombia, Venezuela, Suíça, Noruega,
Grécia, Equador, Uruguai, Peru, Bolivia, da Auditoria Cidadã da Dívida
e das redes internacionais CADTM (Comitê pela Anulação da Dívida do
Terceiro Mundo) e Latindadd (Rede Latino-americana sobre Dívida,
Desenvolvimento e Direitos) se reuniram em Brasília, no Seminário
Internacional “Alternativas de Enfrentamento à Crise”, para demandar:
-
a alteração radical do atual sistema financeiro global, que tem
funcionado de forma desregulada, sem qualquer controle democrático ou
popular, a despeito das crises financeiras serem sentidas pelos amplos
e vulneráveis segmentos sociais;
-
a instalação de comissões para auditoria da dívida pública em cada
país, e o fim da emissão de dívida pública para salvar instituições
financeiras em risco de quebra;
-
o avanço da integração latino-americana e a implantação imediata, em
toda a região, da Nova Arquitetura Financeira, que inclui o pleno
funcionamento do Banco do Sul.
As
entidades repudiam os nefastos efeitos das políticas impostas pelos
bancos e seus representantes – FMI, União Européia e governos – sobre
as populações, com destaque para a Grécia, palco de verdadeira guerra
travada entre o povo e o sistema financeiro.
Este
sistema insiste em exigir demissões em massa e a redução sem
precedentes de direitos e gastos sociais: congelamento salarial,
desemprego, penúria dos aposentados, privatizações, precariedade da
saúde, educação, moradia, tudo isto para garantir o pagamento de uma
dívida repleta de ilegitimidades. Esta é uma crise que multiplica-se
tal qual um vírus, que vem adoecendo e contaminando a sociedade.
A
crise oferece oportunidade de luta conjunta dos povos do Sul e do Norte
contra o “sistema da dívida”, que é a usurpação do endividamento
público, transformando-o em um instrumento de dominação global. Além
das manifestações públicas evidenciadas por greves em várias partes do
mundo, a demanda e a criação de comissões de auditoria da dívida se
multiplicam por vários países. A auditoria é um instrumento capaz de
revelar e documentar a VERDADE sobre esse “sistema da dívida”,
possibilitando à sociedade o CONHECIMENTO sobre como, e a serviço de
quem, tais dívidas foram constituídas. E estamos certos de que o
conhecimento é um dos principais instrumentos dos povos na luta contra
a sua opressão.
O
instrumento de auditoria foi utilizado recentemente com sucesso pelo
Equador que, com base em relatório de comissão criada para esse fim,
respaldado em documentos e provas de ilegalidades, anulou 70% da dívida
com bancos privados internacionais. Este processo foi considerado como
um exemplo para o mundo pela própria ONU, onde a sociedade poderia
estimular a criação de uma comissão de auditoria independente.
No
Brasil, recente Comissão Parlamentar de Inquérito da Dívida Pública,
concluída em 2010, na Câmara dos Deputados, também apontou fortes
indícios de ilegalidades – já encaminhados ao Ministério Público - e
reconheceu que a maior parte da dívida pública brasileira é resultado
das altas taxas de juros, o que demonstra ausência de contrapartida
real de uma dívida que em 2010 consumiu 45% dos recursos do Orçamento
da União para o pagamento de juros e amortizações. Essa dívida, gerada
por mecanismos financeiros ilegais e ilegítimos, entre os quais até
mesmo a prática de juros sobre juros (anatocismo) já declarada ilícita
pelo Supremo Tribunal Federal - STF, deve ser urgentemente auditada.
Justamente
no STF se encontra a ação ajuizada pela Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB) - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº
59/2004 - que pleiteia o cumprimento do artigo 26 do Ato das
Disposições Transitórias da Constituição Federal de 1988. Esse artigo
determinou que o Congresso Nacional constitua uma Comissão Mista para
realizar o exame analítico e pericial dos atos e fatos geradores do
endividamento brasileiro. Hoje, 5 de outubro de 2011, completam-se
exatos 23 anos de sistemático descumprimento desse dispositivo contido
na Lei Maior do país, proclamada para ser a “Constituição Cidadã”. As
entidades presentes no Seminário repudiam essa continuada violação e
declaram seu apoio à importante iniciativa da OAB, e às investigações
do Ministério Público decorrentes da CPI da Dívida.
A
auditoria da dívida é urgente, pois o Brasil também enfrenta uma séria
crise de endividamento, ainda que não aparente. O atual modelo
econômico aplicado no país privilegia o pagamento da dívida ao mesmo
tempo em que aplica todas as medidas recomendadas pelo FMI na Europa.
Estão em marcha no Brasil o corte de R$ 50 bilhões no orçamento
federal; o congelamento de salários de servidores públicos, proposto
pelo Projeto de Lei Complementar 549/2009, e já implementado na prática
pela recusa do governo em negociar com várias categorias; a
privatização da previdência desses servidores (Projeto de Lei
1992/2007); a privatização dos hospitais universitários (Projeto de Lei
1749/2011); a restrição de recursos para investimentos em áreas
essenciais como saúde, educação, moradia, assistência, saneamento etc.
Os
participantes do Seminário declaram também seu apoio à recomposição das
perdas dos aposentados, bem como à campanha pela destinação de 10% do
PIB para a educação, e demais revindicações que visam a resgatar os
direitos sociais.
Repudiamos
a intenção anunciada de que o Brasil poderá destinar recursos para
“ajudar” a União Européia (UE) a “combater” a crise, acenando com o
aporte de mais reservas internacionais brasileiras para o FMI, UE ou
outro instrumento similar. Sabemos que eventuais medidas dessa natureza
não se converterão em ajuda aos povos; a história recente mostra que os
beneficiários, de fato, serão as organizações financeiras, que
continuarão, assim, assegurando níveis extorsivos de lucratividade. Tal
medida não combate a crise, mas a aprofunda, visto que os pacotes de
“ajuda” impõem recessões, desemprego e redução de gastos sociais.
Adicione-se
que os recursos que o Brasil eventualmente possa destinar a tais
pacotes nefastos são obtidos por meio de mais “dívida interna”, sobre a
qual incidem as mais altas taxas de juros do mundo. Esta é a pior forma
possível de “combater” a crise, pois faz a população brasileira pagar
caro para financiar programas que sacrificam ainda mais a população
européia.
Outra
aplicação das reservas brasileiras é a compra de títulos do Tesouro dos
EUA, que não rendem quase nada e ainda financiam as políticas
estadunidenses, como o salvamento de bancos falidos e as guerras.
Todos
esses pontos mostram a necessidade de uma nova arquitetura financeira
internacional, em que a lógica não seja aquela em que os povos dos
países periféricos financiem os impérios. Esta nova arquitetura
financeira passa pela efetiva criação do Banco do Sul, orientado para o
investimento em projetos que atendam às necessidades dos povos, e não
das grandes empresas transnacionais.
Essa
instituição deve ser controlada, portanto, por organismos
representativos da sociedade civil, voltados à defesa dos direitos
humanos fundamentais, dos interesses coletivos, da sustentabilidade
ambiental e da autonomia dos povos. Somente com essa integração
democrática será possível escapar às amarras impostas pelo estado
capitalista, sujeito às determinações ditas “dos mercados”, sabidamente
incompatíveis com o desenvolvimento social.
Neste
sentido, as entidades presentes rechaçam todo e qualquer instrumento de
dominação dos povos a serviço das grandes empresas transnacionais, e
proclamaram:
-
NÃO ao projeto da Estrada Villa Tunari – San Ignacio de Moxos, na
Bolivia, que conta com financiamento do BNDES do Brasil. Esta estrada
atravessa o Território Indígena do Parque Nacional Isiboro Sécure
(TIPNIS), e gerará destruição ecológica e afetará a vida e a cultura
dos povos indígenas. As entidades solidarizam-se com os pronunciamentos
das Redes Latindadd e outras contra este projeto.
-
NÃO à atuação do CIADI (Centro Internacional para a Arbitragem de
Disputas sobre Investimentos), cujas decisões favorecem as
transnacionais em detrimento dos povos. Os países da América Latina
devem se retirar deste organismo e avançar na implementação da Nova
Arquitetura Financeira Internacional;
-
NÃO à promoção de projetos que aumentam a dívida ecológica, a difusão
de um modelo agrícola baseado em monoculturas e agrotóxicos – que
envenenam o ambiente
– enquanto os camponeses permanecem abandonados,
sem reforma agrária;
-
NÃO à presença de tropas brasileiras no Haiti, que servem à manutenção
de um modelo neoliberal de exploração da classe trabalhadora.
Ante todo o exposto, as entidades reivindicam:
-
a suspensão imediata dos programas neoliberais impostos pelo FMI, União
Européia e governos aos povos europeus, e a suspensão do pagamento das
dívidas feitas para salvar o setor financeiro e sustentar o lucro de
grandes empresas;
-
uma nova arquitetura financeira internacional, que privilegie não o
setor financeiro do Norte, mas o conjunto dos povos e sua parcela
majoritária, que depende de investimentos públicos capazes de
desenvolver políticas de emprego e salários dignos e de produzir
serviços satisfatórios, como nas áreas de saúde e educação;
-
a completa auditoria das dívidas do Sul e do Norte, que dará aos povos
uma importante ferramenta para derrotar este verdadeiro “sistema da
dívida”, o qual promove a apropriação das riquezas globais e a
submissão de enormes fatias populacionais do planeta em benefício de
uma elite capitalista, empresarial e financeira. Para tanto, as
entidades internacionais presentes elaborarão um manual de auditorias
da dívida, direcionado tanto aos especialistas como também aos
movimentos sociais.
-
a democratização das decisões de política econômica para o
enfrentamento da crise, expressa em suas facetas alimentar, ambiental,
financeira e social, o que será possível somente a partir do amplo
conhecimento dos fatores de poder que impedem o pleno acesso aos
direitos consagrados nas diversas ordens constitucionais e no direito
internacional.
Brasília, 5 de outubro de 2011
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